Diário de bordo – Recife a Brejo da Madre de Deus
Com esse
post inicio a publicação de alguns dos relatórios das aulas de campo de
que participei no curso de Geografia (UFPE), pois neles estão
registradas informações que poderei usar no futuro como critério de
comparação para avaliar as mudanças espaciais nas regiões visitadas e
também fica patente como os diferentes elementos da análise geográfica
se interconectam na vida real.
Relatório de aula de campo
No dia 9 de junho de 2017 ocorreu uma excursão didática das disciplinas de Análise Climática e Geomorfologia dos Ambientes Úmidos e Semiáridos,
ministradas pelo Professor Lucivânio Jatobá, e vinculadas ao curso de
Ciências Ambientais da Universidade Federal de Pernambuco (no meu caso,
sou aluno da segunda disciplina elencada). Essa aula de campo tinha como
objetivo principal mostrar para os alunos de Ciências Ambientais e de
Geografia o desenvolvimento de dois domínios morfoclimáticos do estado
de Pernambuco, a saber: os mares de morros e a caatinga; de modo
específico, seriam analisadas as relações do clima com a modelagem do
relevo e o reflexo disso na fauna, na flora e nos solos. Tais objetivos
foram atingidos, mas se um número maior de paradas ao longo do percurso
tivesse ocorrido a fixação do conteúdo visualizado seria mais eficiente.
Foram visitadas cidades e localidades do
Litoral, da Zona da Mata e do Agreste de Pernambuco (que serão
especificadas adiante) ao longo do trajeto de 177km, que foi percorrido
em cerca de 8 horas.
Etapas da excursão
1) Recife – Vitória de Santo Antão
Iniciamos o percurso no sítio urbano do
Recife, especificamente na Universidade Federal de Pernambuco, às
7h50min, numa altitude de 10m. Essa área do estado de Pernambuco é
marcada por uma precipitação anual média de 2.000mm, um reflexo do clima
As´ (quente e úmido com chuvas de outono-inverno), e possui uma
topografia eminentemente plana, posto que inserida numa planície
flúvio-marinha. Ao norte do Recife, no entanto, verificam-se sedimentos
argilosos e arenosos que foram depositados no final do Terciário
(Plioceno) e do inicio do Quaternário (Pleistoceno); esses sedimentos
compõem o que se chama de Grupo Barreiras e possuem características que
sugerem a predominância de climas secos no tempo da deposição.
Logo na saída, sob uma chuva fraca,
notamos as consequências das precipitações mais fortes da noite
anterior: alagamentos e destruição da infraestrutura viária. Esses dois
problemas ambientais são o resultado da soma do relevo plano e da média
chuvosa com a impermeabilização do solo pela urbanização.
Dando seguimento, nos dirigimos à BR 232;
no trecho que vai da CEASA aos quartéis do Exército presenciamos, em
alguns lugares, uma mata secundária que substituiu a antiga floresta
latifoliada subperenifólia, conhecida como Mata Atlântica, que era rica
em variedades vegetais e muito fechada. Essa formação vegetal, que tinha
o Visgueiro, árvore cuja copa atinge de 30 a 40m, como representante
exemplar em Pernambuco, foi amplamente devastada durante a colonização e
teve como que um último golpe mortal nos anos 1970 com o incentivo à
produção de álcool combustível; hoje ela está reduzida a pequenas
manchas que, no local citado, sobrevivem por causa da proteção dos
militares.
Efetuamos uma pequena parada onde
observamos o citado Visgueiro e algumas espécies exóticas, como a
Palmeira-de-Dendê e a Mangueira, que se aclimataram tão bem no litoral
do Nordeste que muitos acham que são originais do nosso país.
Mas a frente, no ponto entre o TIP e o
Curado percebemos a elevação do terreno: são colinas de vertentes
convexas, indicadoras do contato entre terrenos cristalinos
pré-cambrianos (com rochas vermelhas e amareladas, um resultado do forte
intemperismo químico) e os sedimentos cenozoicos do Grupo Barreiras. Há
fortes indicadores desse ponto representar um pediplano dissecado.
Fizemos, então, a primeira parada mais
demorada. Foi no município de Jaboatão, a 40m de altitude. Examinamos a
estrutura subsuperficial (geologia, tectonismo, sedimentos, marcas
climáticas, etc.) de um recorte na paisagem feito durante a construção
da rodovia e aumentado ao longo dos anos para a instalação de um posto
de gasolina. Esse recorte pode ser visto na fotos 1 e 2:
Foto 1 – Jaboatão dos Guararapes (Rodovia BR 232) |
Foto 2 – Jaboatão dos Guararapes (Rodovia BR 232) |
De início, nessas imagens, segundo a pesquisadora da EMBRAPA que
acompanhou a excursão didática, Aline Áurea Florentino Silva, notamos um
possível argissolo, formado por milonitos alterados, bem oxigenado e
com uma declividade suave. Uma falha, representativa de estarmos na área
do Lineamento Pernambuco (começa no Pina e vai até o Piauí, também
estando presente na África), remete ao fato de que o terreno se deslocou
horizontalmente, daí, inclusive, os milonitos, que só se formam sobre
grande pressão.
No caminho para Bezerros, onde o clima BSh (semiárido – no Nordeste do Brasil ele concretiza-se pela irregularidade das chuvas e alto grau de evapotranspiração) fica definitivamente evidenciado, constatamos os sinais da grande atividade tectônica (foto 4) que marcou essa região ao redor do Lineamento Pernambuco. Nas partes mais altas temos o granito e nas mais baixas as rochas metamórficas resultante da pressão e fricção que envolveu a crosta: gnaises, milonitos e migmatitos.
Para a análise do solo, nos seus 5 fatores de formação, a saber: o material de origem, o tempo, o clima, o relevo e os organismos vivos,
o recorte visto acima é extraordinário. Ficou claro para todos os
presentes a diferença entre o horizonte orgânico, o colúvio (amarelado,
sinal de que deve ter migrado) e um elúvio bem desenvolvido (sinal da
umidade deste ponto do trajeto).
Dando continuidade à viagem didática,
indo em direção ao município de Moreno, notamos a presença próxima à
pista do cultivo da cana-de-açúcar (foto 3 – em Jaboatão esse cultivo se
retraiu para espaços distantes da via federal). Aqui uma mata
exuberante foi retirada para dar lugar às plantações, reduzindo a
biodiversidade da região, e seus resquícios estão sob o perigo constante
derivado da construção de condomínios (que também provocam a
impermeabilização do solo).
Chegando a Moreno, nos encontramos a 120m de altitude, e notamos em
alguns pontos a presença de eucaliptos, espécie exótica que interfere na
biota do solo absorvendo muita água. De relance, vimos uma pequena e
bela planície alveolar.
Foto 3 – Moreno (Rodovia BR 232) |
Prosseguindo, já num distrito de Moreno,
Bonança, observa-se um claro limite entre a ocupação humana e o resto do
bioma original, dado pelo desmatamento presente ainda hoje. Aqui a
umidade já é menor (700mm a menos que em Recife) e isso diminui o
intemperismo químico, levando os solos a terem um elúvio menos
desenvolvido que em Jaboatão. No final de Moreno nos elevamos a 140m de
altitude.
Chegamos a Vitória de Santo Antão. Nesse
trecho, próximo à Pedreira Itamatamirim, antiga Brinel, o Lineamento
Pernambuco aparece novamente, mas o milonito que em Jaboatão estava
alterado, aqui se faz presente na sua conformação natural. Igualmente
constata-se a existência de granitos e migmatitos. A atividade
mineradora, além da degradação da paisagem, provoca uma forte nuvem
sílica em alguns horários na proximidade da estrada.
O elúvio dessa área é cada vez mais
delgado, pois aqui o índice pluviométrico só chega a 1000mm (ou menos)
anualmente. Estamos num pedimento. Num mesmo município encontramos uma
grande variedade de formações vegetais; indo para SE em direção a
Moreno, por exemplo, ainda temos a presença de uma exuberante floresta
subperenifólia, enquanto que no entorno da estrada a presença de
gramíneas e arbustos predomina, sinal da proximidade com a caatinga
hipoxerófila. Esse convívio de paisagens ecológicas diferenciadas numa
área reduzida é o indicador de que estamos num espaço transicional, um ecótomo.
2. Pombos – Gravatá – Caruaru
A excursão finalmente chegou ao sopé de
uma escarpa de falha, a chamada Serra das Russas, em Pombos. É o fim da
Zona da Mata e do clima As´, estamos a 170m de altitude. Andando mais um
pouco, chegamos aos 200m de altitude e vislumbramos ao longe o rio
Tapacurá. Aqui a Caatinga Hipoxerófila domina, mas está com um grau alto
de degradação, o que ocasiona a erosão do terreno. Próximo à rodovia
verifica-se uma grande quantidade de lixo, sinal da falta de uma
política para os rejeitos sólidos no município e fator de contaminação
do solo. Um dado interessantíssimo nesse ponto do trajeto, revelador das
interações do clima com o relevo, é que nas diferentes vertentes da
serra notamos a presença de microclimas, de modo que em alguns lugares a
vegetação é de Caatinga Hiperxerófila.
No caminho para Bezerros, onde o clima BSh (semiárido – no Nordeste do Brasil ele concretiza-se pela irregularidade das chuvas e alto grau de evapotranspiração) fica definitivamente evidenciado, constatamos os sinais da grande atividade tectônica (foto 4) que marcou essa região ao redor do Lineamento Pernambuco. Nas partes mais altas temos o granito e nas mais baixas as rochas metamórficas resultante da pressão e fricção que envolveu a crosta: gnaises, milonitos e migmatitos.
Foto 4 – Caminho entre Pombos e Bezerros (Rodovia BR 232) |
Um momento interessante é o do
surgimento, à direita da BR 232, de um maciço residual, localmente
conhecido como Serra Negra (não deve ser confundida com uma formação
semelhante e homônima no Sertão). Essa serra, pela altitude, possui no
seu topo uma área de floresta tropical úmida, num evidente contraste com
a aridez do entorno; ela perfaz um brejo de altitude: a altitude faz
com que a camada superior dos alísios se eleve e dê “espaço” para que a
camada úmida desenvolva nuvens de chuva, provocando chuvas que variam de
700 a 1.000mm anuais (enquanto a média em Bezerros é de 600mm anuais).
Já em Gravatá, sentimos uma temperatura
mais amena, o ambiente é frio e seco, perfazendo o resultado dos 400m de
altitude em que nos encontramos e da pluviosidade média anual de 500mm.
Essa região está, junto com Bezerros, num pedimento, isto é, uma grande
vertente côncava (as vertentes serão côncavas desse ponto até o fim da
viagem, revelando o tipo de erosão, por recuo paralelo, que caracteriza o
relevo em climas semiáridos, e que foi estuda por Lester King),
elaborada em clima seco, que mergulha suavemente em direção ao fundo de
um vale.
Toda essa área faz parte da Bacia do Rio
Ipojuca, um rio temporário, típico dos cursos d´água do semiárido.
Durante a maior parte do ano ele praticamente não tem água – cabe notar
que esse não é o caso de alguns trechos hoje em dia, perenes o ano todo
por causa do esgoto jogado no leito do rio! -, mas em momentos de fortes
chuvas, como as deste ano, é tomado por enxurradas que descem em alta
velocidade, podendo destruir construções que ocuparam seu leito ampliado
e matar pessoas pegas de surpresa.
Chegando em Caruaru, dois elementos se
destacam na paisagem: um artificial, que é o conjunto de prédios altos
que foram construídos nos últimos 15 anos, e um natural, que é o Morro
do Bom Jesus. O primeiro elemento deriva do crescimento econômico
(relacionado com a indústria têxtil – “sulanca” -, com o polo
farmacêutico e com fato do município ser um hub de várias rotas
comerciais) que gerou uma inesperada explosão demográfica e que já se
reflete em problemas ambientais: esgoto não tratado em grande volume
sendo lançado no leito do Ipojuca e um trânsito caótico. O segundo
elemento é um inselberg fincado no centro da cidade, resultante da
denudação de uma antiga área cratônica que revelou seu corpo plutônico.
3. Caruaru – Fazenda Nova
Após uma parada para o almoço, retomamos a
viagem, no sentido NO, em direção a Fazenda Nova, no município de Brejo
da Madre de Deus. Ainda no município de Caruaru, no distrito de Rafael,
a 530m de altitude, encontramos um pediplano ondulado (fotos 5 e 6).
Conclusões
Foto 5 – Distrito de Rafael (Caruaru) |
Foto 6 – Distrito de Rafael (Caruaru) |
Essa modelagem evidencia um clima mais úmido no passado numa área que hoje é seca.
Prosseguindo, ainda em Rafael, do lado
esquerdo, observamos falhas em forma de crista que se prolongam até o
caminho para Brejo da Madre de Deus e são a causa do clima mais seco a
sotavento que envolve Fazenda Nova, na medida em que permitem a descida
da camada de inversão dos alísios.
Adentramos, então, na PE 145, e logo
observamos uma miríade de matacões (foto 7). Os matacões são blocos de
rochas ígneas pré-cambrianas que sofreram um fraturamento ainda abaixo
da superfície; tal fraturamento levou à produção de núcleos arredondados
e não alterados (rocha sã) envoltos por rochas em vários níveis de
alteração, que vão se soltando como as partes de uma cebola. Mais tarde
eles foram trazidos à superfície pelo soerguimento e posterior denudação
do terreno.
Foto 7 – Matacões (caminho para Fazenda Nova) |
No caminho para Fazenda Nova ainda
conseguimos observar um brejo de pé de serra e fizemos uma parada. Os
brejos de pés de serra são locais onde a água que vem das áreas mais
altas se acumula num lençol freático que fica próximo à superfície e,
dessa maneira, permite uma vegetação mais densa na área de caatinga e
mesmo a agricultura. A parada foi na localidade do Riacho Doce, a 450m
de altitude (nota-se a diminuição da altitude em comparação com o
distrito de Rafael), para observação da fauna e flora locais após o
recente período de chuvas (destacou-se a lã de seda, planta que resistiu
a recente estiagem prolongada).
Por fim, chegamos a Fazenda Nova, que se situa numa zona deprimida e, portanto, muito seca, a 440m de altitude.
O trajeto da excursão didática, embora de
tamanho médio, percorreu um trecho do estado de Pernambuco que permite a
visualização do espaço de uma maneira muito rica. Geologicamente,
ficaram patentes os processos violentos pelo qual passou a crosta de
nossa região em outros períodos históricos; sem um guia, na pessoa do
professor, e sem a ida a campo é difícil identificá-los apenas com as
informações dadas pelos livros ou aulas convencionais.
Geomorfologicamente, a riqueza do percurso foi ainda maior, pois tivemos
à nossa frente resultados diversos das interações dos produtos dos
processos geológicos com a atmosfera (clima). No sentido inverso, as
influências do modelado da superfície terrestre no clima foram bem
explicitadas em cada trecho. Em relação à interação do homem com o
espaço, isto é, com a geografia no seu sentido pleno, notamos um grande
número de ações durante toda a aula de campo, desde as com objetivo
econômico direto (agricultura, mineração, sulanca) até as relacionadas
com moradia e transporte, mas, infelizmente, elas são feitas sem o
respeito devido que o meio ambiente demanda (até para benefício, no
longo prazo, do próprio homem). Portanto, pode-se dizer que a principal
lição da excursão é a de que todos esses elementos que a ciência por uma
questão de método separa, não estão separados, e interagem num fluxo
delicado que se não for levado em conta pode diminuir a qualidade de
vida da população ou mesmo, em alguns casos, torná-la inviável.
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