Decoreba
Texto do Professor Flávio Brayner, publicado hoje no Jornal do Commercio de Recife:
“Matéria atrai matéria na razão direta
das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias”; “O quadrado
da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”… Fui obrigado, na
escola, a decorar essas frases sem jamais tê-las compreendido. A minha
geração passou pelo “método” da decoreba que, hoje, qualquer educador
considera inútil e sem relevância para a vida. Mas a disputa em torno da
validade da decoreba é muito mais antiga e data da época de Montaigne e
de Descartes (fim do século XVI).
Na verdade “apprendere par coeur”
(aprender de coração) significava, na tradição pedagógica que adentrou a
modernidade, uma forma de se relacionar com o saber que ia além do
puramente cognitivo: exigia paixão, emoção e era sinônimo de cultivo da
alma, instrumento de distinção intelectual e social. O objeto
privilegiado eram os textos do classicismo greco-romano (Cícero,
Hesíodo, Sêneca, Ovídio, Epicuro…) e decorá-los era uma forma de trazer o
passado dentro de si: saber o que foi dito e pensado antes de você – e
sabê-lo de “coração” – era expressão de reverência com a autoridade dos
Antigos e de responsabilidade com a continuidade do Mundo. Até que
chegou a modernidade e a sua “desmoralização” do passado!
Descartes (um dos “inventores” da
subjetividade moderna) via a infância como um “escândalo”: destituída da
Razão, a infância nos impedia de adquirir desde cedo a capacidade do
julgamento criterioso. Assim, a educação deveria ser voltada para o
rápido abandono da infância (tornar-se adulto) e, para apressar o
processo, as crianças poderiam começar por imitar os adultos, decorando
frases, mesmo que incompreensíveis para elas: Descartes era o
anti-Rosseau. Já Montaigne (que conhecia a tradição clássica de cor)
achava que mais valia uma cabeça bem-feita (capaz de refletir sobre a
vida como quem faz uma experiência, um “ensaio”) do que uma cabeça cheia
(de coisas inúteis). Quando a modernidade alterou nossa relação com o
tempo, depositando no futuro a realização da utopia, nossa visão do
passado também se modificou: repetir o passado sem pensar era, além de
irracional, um empecilho ao progresso do espírito. O curioso é que
chegamos à contemporaneidade com um problema: nem decoramos mais, porque
destituímos o passado de sua exemplaridade (e dispomos de tecnologias
de memória) e a cabeça ficou cheia de informações inúteis que a internet
proporciona, sem que tenhamos critérios (a cabeça “bem-feita”) para
julgar o que serve e o que não serve.
Como diria Cícero, “O tempora! O mores!” (frase decorada!).
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