Travessia

Artigo de Flávio Brayner (Jornal do Commercio, Recife):

Há alguns meses escrevi aqui no JC um artigo que comentava uma placa afixada num portão que dizia "Educa-se cães": mostrei que a educabilidade é um atributo exclusivamente humano e não pode ser estendido aos cães! Recentemente vi um cartaz nas portas dos fundos de uma grande escola, ali na Rua Amélia, que diz "Não use a escola como travessia". Claro que o aviso diz respeito ao (ab)uso daquele espaço como atalho entre duas avenidas. Mas não posso evitar certa ironia ao comparar esses dois avisos: no primeiro atribui-se aos cães uma característica especificamente humana; no segundo "retira-se" da formação humana escolar aquilo que é seu mais importante atributo: a travessia!

Todos nós esperamos, uns mais outros menos, que a escola nos forneça algo que nos fará, ao sairmos, diferentes de como éramos ao entrar, e esta diferença é sempre positiva: seremos melhores do que éramos. Isso lembra a mais conhecida "travessia" de toda a história, aquela descrita no livro do Êxodo: a travessia do Sinai e a esperança redentora de chegar à Terra Prometida. Há, assim, algo de profundamente religioso em todo ato educativo, já que dele esperamos uma "conversão", não como adesão forçada ou voluntária a uma religião, mas como um encontro consigo mesmo que necessita passar (atravessar) pelos outros, sejam eles os mais velhos que me orientarão na travessia, sejam os meus colegas que experimentarão comigo suas frustrações e expectativas. A própria palavra "diálogo", hoje entronizada em vocabulário pedagógico, não significa o contrário de "monólogo": "dia" em grego quer dizer exatamente travessia (ou "através de"), uma travessia pela palavra e através da palavra ("dia/logos"). É isto o que a escola nos proporciona! A palavra é a única e frágil garantia de que dispomos de que aquilo que dizemos do mundo, dos outros e de nós mesmos corresponde ao que estas coisas "são", e a escola é este lugar específico onde tomamos um contato diário com a palavra, seus usos ilocutórios, perlocutórios, performáticos, sua semântica, sua pragmática, e aprendemos a agir a partir delas (obedecendo, ordenando, descrevendo, denunciando, resistindo - toda resistência política passa pela palavra). "O mundo, dizia Baudelaire, é uma floresta de símbolos e o homem está perdido nela!": esta floresta é feita de signos apontando para lugares e saídas diferentes e nas escola  começamos a praticar a travessia que precisamos fazer através da pluralidade de significações atribuídas ao mundo. Use a escola como lugar de "travessia": ela não é um atalho!

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