Diário de bordo – Becos de Santo Antônio e São José

Segundo Claude Raffestin (RAFFESTIN. A Produção das Estruturas Territoriais e sua Representação. Território e territorialidades – teorias, processo e conflitos. Expressão Popular, 2009, São Paulo –SP. p. 17) a produção do território pode ser descrita da seguinte forma:
O ambiente constitui a matéria-prima sobre a qual o homem trabalha, socialmente, para produzir o território que resulta, eventualmente, mais tarde, por intermédio da observação, “em uma paisagem”. Esta não é uma construção material, mas a representação ideal da construção. Isso significa que o território não resultará, obrigatoriamente, em paisagem, sem a intermediação da imaginação condicionada por um mediador peculiar.
Assim sendo, sobre um dado território podem existir várias paisagens a depender dos critérios de observação e de quem observa. Nesse processo, a história socialmente compartilhada e os valores individuais do observador são como dois polos de tensão dialética na qual a paisagem tem sua gênese.

Dentro dessa perspectiva, sempre me considerei um observador privilegiado, isto é, um recifense que conhecia com certa exatidão e profundidade a geografia da cidade. Perambular pelas ruas, a pé ou de bicicleta, é um hobbie que cultivo desde a adolescência, ou seja, desde a época em que as pessoas pararam de fazer isso por medo da violência ou por conta da inflexão cultural que as fez se voltarem cada vez mais para seus próprios mundos. A rua, que era o lugar privilegiado do footing, como dizia minha avó relembrando a vida vespertina na Rua Nova, o lugar onde a res publica se concretizava localmente, se tornou um corpo estranho, mas não para mim; pelo menos é o que eu pensava…

Travessa da Congregação

No dia 23 de setembro deste ano descobri que Recife ainda reserva grandes surpresas. Nessa data participei de uma aula de campo da disciplina de Geografia Cultural, sob a supervisão do professor Bruno Maia Halley, e percorri uma série de becos nos bairros centrais de Santo Antônio e São José. Simplesmente não conhecia uma boa parte desses lugares e, menos ainda, tinha prestado atenção na rede de elementos que construía a paisagem local.

Logo no primeiro beco pelo qual passei, a Travessa da Congregação, me surpreendi pela vida encontrada. Já tinha andado por ele à noite ou em dias de feriado, e lembro de ter tido uma má impressão, calcada no vazio, no mal cheiro e nos moradores de rua drogados do entorno. Mas durante o dia o que encontrei foi movimento, cheiro de lanches sendo preparados e trabalhadores do comércio dando uma pausa nos afazeres. Longe de ter tido uma experiência topofóbica, fiquei com a sensação de nostalgia que só os locais decadentes mais que ainda possuem vida em certos dias ou horários costumam deixar.

Beco do Marroquim – Visão parcial

O próximo beco foi o do Marroquim. Fui logo recebido pelo barulho dos anúncios e músicas comerciais veiculados por caixas de som colocadas na porta das lojas. Essa travessa parece que é dividida em setores, um dedicado a miudezas diversas e outro a tecidos. No meio, fica a última loja da rede Fortunato Russo, que ainda no final da década de 1990 tinha destaque na venda de eletrodomésticos e móveis na cidade; lembro que comprei minha primeira televisão (primeira no sentido de ser com o meu próprio dinheiro), um aparelho de tubo de 14 polegadas, nessa rede. Nessa loja, encontrei o maior personagem desse campo, o Sr. Fortunato Russo Sobrinho, salvo engano um bisneto do fundador; comendo um pacote de batata frita, ele recebeu a mim e ao colega que fazia o percurso comigo, e contou de tudo um pouco. Aparentemente sua identificação com o lugar é tão grande que o prazer em falar dele torna qualquer entrevista muito fácil. Ele nos contou tanto sobre os usos quanto sobre os contra-usos do beco do Marroquim: no passado, as polacas e holandesas (teriam sido francesas, na verdade?) faziam ali seu ponto de trabalho, proporcionando a seus clientes práticas que as prostitutas locais recusavam; portugueses, árabes, italianos e gregos construíram sua história comercial no beco, num tempo em que o Brasil era um refúgio para a violência de cunho nacionalista ou ideológica que afundava antigas civilizações no Oriente e na Europa; a boate Mauá atraiu os jovens por anos e anos numa das esquinas do Marroquim; e Lolita, uma travesti cheia de histórias, fazia no centro do Recife, no submundo do beco, o mesmo que Madame Satã no Rio de Janeiro da década de 1930. A melhor história, contudo, foi a da pedinte, neta de escravos e mãe de um ex-estudante da UFPE, que por anos e anos ficava na frente da Fortunato Russo e acabou sendo homenageada num painel de azulejos:


Depois, passei pela Travessa do Sirigado, ou Travessa do Mercado, ou ainda “Beco do Viado” [1]. A variação na nomenclatura desse beco deriva do conhecimento de aspectos de sua história, pois, segundo alguns comerciantes, no passado havia um homossexual afetado, o “viado”, que mandava na rua. Mas o que impressiona mesmo é o seu comércio vibrante; essa pulsação mercantil acabou querendo transformar a viela numa galeria, e, assim, percebi uma marquise ao longo do comprimento da Travessa. Foi o primeiro beco-galeria que encontrei.

Travessa do Sirigado, com marquise que percorre todo o seu comprimento. Exemplo de “beco-galeria”

Me direcionei, então, às ruas por trás da Basílica da Penha, que relembram um São José bem português. A Igreja de São José do Ribamar, construída por uma irmandade de carpinteiros, e com símbolos maçônicos na fachada, reina no silêncio da área.

Continuei a andar, e cheguei a uma “terra arrasada”, isto é, ao que sobrou de um setor do bairro de São José que foi posto abaixo pelo ensandecimento “modernizador” da década de 1970.

O primeiro trecho dessa terra foi o beco dos Martírios; travessa pequena, com comércio de miudezas e roupas baratas, e com baixa circulação de pessoas. Seu nome está associado ao da antiga igreja do Bom Senhor Jesus do Martírios, demolida para a polêmica construção da avenida Dantas Barreto na década de 1970. No beco encontra-se uma placa, já bem desgastada, com seu nome numa ortografia de outra época: Martyrius. Na esquina dele com a Dantas Barreto encontrei uma placa indicadora da mudança da paisagem recifense, pois além da demolição da igreja citada, várias ruas de moradia também foram arrasadas pelo ímpeto iconoclasta dos urbanistas do século passado:

Placa com o nome de uma rua hoje inexistente e que deu lugar à Avenida Dantas Barreto

Continuei a andar, pela calçada da avenida que liga o “nada” ao “lugar nenhum”, no meio de um ambiente que mais parece saído de uma descrição de Calcutá que dos sonhos higienistas do prefeito Augusto Lucena. Logo cheguei à Galeria Sá, a irmã da Travessa do Sirigado. Se esse último é um beco-galeria, a primeira é uma galeria-beco; a ligação entre duas outras vias, o aperto da passagem, as pequenas lojas (invariavelmente de quinquilharias eletrônicas chinesas) dão a esse estabelecimento o ar das pequenas ruas do “vuco-vuco” do entorno do Marcado de São José.

A existência de uma galeria-beco é um exemplo claro de como, na cultura dessa região da cidade, pelo menos para o comércio, os becos são valorados positivamente. “Pegar o beco”, aqui, é sinônimo de boas compras.

Indo em direção ao Pátio de São Pedro, passei por ruas meio que abandonadas, que ainda fazem jus às condições de precariedade que lhes nomearam no passado, como a rua das Águas Verdes (verdes do lodo da água de chuva empoçada…). Nelas o observador atento pode encontrar uma dessas surpresas que uma cidade tímida como Recife só apresenta a quem muito lhe namora: a Farmácia Sabino Pinho, a mais antiga em atividade contínua no estado (e creio que uma das mais antigas do Brasil, quiçá a mais velha de todas).

Pronto, finalmente achei que tinha chegado a um lugar conhecido, mas logo vi que ele só o era na superfície. Por anos e anos passei pelo Beco do Veado Branco ou do Alicate sem nunca ter levantado a cabeça para ver o veado ou ler a placa que chama o lugar de rua Barão da Vitória. Não sei se de fato estava num beco, mas, de qualquer forma, aqui beco é luxo e é melhor chamar como chama quem ali trabalha.

O veado branco

Dei a volta, eu fui de novo em direção da “terra arrasada”, atravessei a Dantas Barreto e fui andando pela rua da Palma até que me deparei com o Inferninho.

O Inferninho é um inferno. Beco sem história e glamour decadente, já nasceu morto. Foi formado por uma invasão numa rua; uma invasão de bares que tocam música alta para trabalhadores que preferem se alienar na bebida das dificuldades da vida. Possui duas famílias morando nele e mesmo elas não lhe tem amor.


Por fim, descobri a Travessa do Falcão. Um estranho beco bifurcado, com um de seus braços sem saída.

Bifurcação sem saída na Travessa do Falcão

Desse modo, voltei a me surpreender com minha cidade. Os becos, que marcam seu traçado central, podem ser percebidos de maneira positiva, negativa ou complexa a depender de quem o faz e da representação que eles tem para o grupo social do observador. Essa variação axiológica, universal, foi bem expressa por Cora Coralina na sua obra Os Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais em que destaco o seguinte trecho:
Becos da minha terra
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio, Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio
Ou seja, a poetisa ama algo que ela adjetiva apenas de modo negativo, revelando uma ambivalência comum nas referências da literatura e do linguajar popular, e que também constatei ao fazer todo o percurso descrito neste post.

[1] A nomeclatura “viado” se impõe a “veado” pois se trata de uma referência a “transviado”.

Comentários

  1. Existe alguma diferença entre beco e viela?

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  2. Na época em que escrevi esse texto eu usava as duas palavras como sinônimas, mas um amigo sociólogo me disse que nas Ciências Sociais eles só chamam de viela a rua estreita em que passa pelo menos um carro. Faz sentido, embora, por outro lado, o nome seja mais antigo que a existência de carros.

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